Isabel Pires
Em pequena ela vira uma casa pintada de rosa
e branco com um quintal onde havia um poço com cacimba e tudo. Era bom olhar
para dentro. Então seu ideal transformara-se nisso: em vir a ter um poço só
para ela. Mas não sabia como fazer e então perguntou a Olímpico: / — Você sabe
se a gente pode comprar um buraco? / — Olhe, você não reparou até agora, não
desconfiou que tudo que você pergunta não tem resposta? / Ela ficou de cabeça
inclinada para o ombro assim como uma pomba fica triste. Clarice Lispector,
in A hora da estrela.
A Edgar Allan
Poe, que nos ensinou que o terror, muitas vezes, pode estar dentro de nós
mesmos.
E a Antoine
de Saint-Exupéry, para quem o deserto é belo porque esconde um poço em algum
lugar.
Éramos um grupo razoável, cinco ou seis, remanescentes
de uma festa que nem lembrávamos mais por que tínhamos ido. De qualquer forma, era
fim de festa, ali por volta de duas ou três da madrugada. Celulares descarregados, ficamos à deriva, à espera de
alguma carona, quem sabe, ou, na pior das hipóteses, que o dia clareasse. Enquanto
isto, conversávamos futilidades. Quando nos cansamos de tanta inutilidade,
passamos aos casos engraçados e pitorescos. De caso em caso, chegamos às
histórias antigas de assombração, com seus cemitérios, casas com sótãos e porões cheios
de segredos, morcegos, chupa-cabras e fantasmas que pedem carona nas estradas – aquelas
histórias cujo final costuma mais render boas risadas do que propriamente provocar
arrepios.
Alguém contou a história do “fantasma do corredor”,
que só aparecia para as mulheres da família. Os homens juravam nunca tê-lo
visto. Ou teriam visto e se calado, como numa espécie de pacto, solidariedade
masculina, essas coisas? Ah vá. O fato é que, quando um de nós contava um caso,
os demais prendiam a respiração e a interrupção era mínima.
Os outros já haviam contado suas histórias e
aguardavam, certamente, que eu também contasse a minha. Na verdade, eu não
tinha nenhuma história sensacional para contar, mas seus olhares me intimavam a
arranjar uma. Vasculhei minhas recordações e comecei lentamente a narração.
— Quando eu era adolescente, morei numa casa que tinha
um poço.
— Um poço?, perguntou um dos meus companheiros, com um
tom de voz que denunciava certa decepção. Mas alguém fez psiu e aguardaram pacientes que eu continuasse.
— Sim, um poço. Daqueles bem antigos. A casa também
era antiga, mas não usávamos o poço. Havia água encanada. E ele ficava lá, sem
sentido, sem utilidade nenhuma, bem no fundo do quintal. Para disfarçá-lo, haviam
colocado, em cima da tampa, uns vasos de plantas bem vistosas, samambaias
choronas, avencas... begônias. De vez em quando, eu gostava de retirar a tampa
menor, quadrada, que fica no centro da tampa de cimento redonda e enorme do
poço. Ficava olhando para dentro do buraco escuro e fundo e às vezes atirava
pedrinhas, até ouvir o barulho na água. Blum! Splash!
Eu me esmerava nas onomatopeias, para criar algum
interesse na história, mas não encontrava nada digno de nota. Impassíveis, eles
prosseguiam firmes à espera da continuação.
— O poço era mesmo bem fundo. Escuro e cheio de mistério.
Durante muito tempo, aquele poço no fundo do quintal perseguiu de perto a minha
imaginação de adolescente. Às vezes, me pegava pensando se não havia um corpo
escondido lá. Outras vezes, também pensava quanto tempo levaria para enchê-lo
de pedrinhas até a borda. De vez em quando, também imaginava se alguém caísse no
poço e os bombeiros fossem chamados e precisassem descer pelas paredes
barrentas e frias, numa operação de salvamento. A imagem daquele poço perseguia
meu pensamento e me deixava sempre com um frio na boca do estômago.
Parei para tomar fôlego, esperando algum comentário
dos meus companheiros. Mas eles continuavam impassíveis. Percebi que aguardavam
algo mais. Um poço, mesmo o mais escuro e fundo e cheio de mistério,
perseguindo o pensamento de alguém pode ser fantástico, mas não causa maiores
sensações. Eles queriam ação, algo rápido e assombroso, como um conto de Poe.
Lembrei-me então de um episódio concreto, ligado ao poço. Ofereci-o, pois, à
saciedade de meus companheiros.
— Um dia, um amigo foi nos visitar. Estava passeando tranquilamente
pelo quintal, perto do poço, talvez também atraído por ele, como eu, quando de
repente o nosso cachorro soltou-se da corrente e avançou para ele,
dentes assustadoramente arreganhados, latindo furiosamente. O rapaz começou a
correr feito louco ao redor do poço, e o cachorro atrás, correndo também em
círculos. Era incrível a velocidade em que os dois corriam. Parecia um
carrossel desenfreado. Até que alguém conseguiu controlar o cachorro e levá-lo
dali. O nosso amigo, pálido, as pernas bambas do susto e da correria, foi levado
para dentro de casa. Eu fiquei imaginando se a tampa do poço estivesse aberta,
qual dos dois – homem ou animal – cairia primeiro dentro dele. Certamente seria
o homem, no afã de se livrar da mordida do cão. E este, em seguida, pularia no
buraco escuro, perseguindo seu intento – cravar fundo os dentes na carne branca
do homem.
— Por que vocês não aterravam o poço?, perguntou um
dos meus ouvintes, repentinamente interessado.
— Parece bobagem, mas ninguém se atrevia a fazer isto.
Era como se o poço fosse um ser vivo, alguém da casa, quase mesmo da família.
Quando enfim nos mudamos, as plantas que colocávamos sobre a tampa do poço, e
que levamos para a nova casa, eram lembranças vivas dele. Quando íamos
molhá-las, elas pareciam nos acusar, agitando as folhas ao contato dos chuviscos,
como se fossem dedos em riste nos nossos rostos. Aos poucos, deixamos de molhar
as plantas. Como não chovia há muito tempo, elas começaram a secar,
acusando-nos duplamente. O remorso se abateu sobre todos da casa. Ninguém dizia
nada, mas sabíamos que era a imagem do poço que nos perseguia dia e noite. E,
assim como quem não quer nada, apenas para “se lembrar dos tempos da casa
antiga”, meu pai mandou construir um poço num canto do quintal da casa nova. A
construção foi difícil, mas quando finalmente ficou pronto, os pedreiros
estranharam, ao saber que o poço não seria utilizado para fornecer água. É
apenas uma peça decorativa, explicava minha mãe, meio sem jeito. Os pedreiros
abanavam a cabeça, incrédulos. Peça decorativa no fundo do quintal? Estava
pronto o poço e, na medida do possível, tão semelhante ao outro, com a
diferença de ser novo em folha. Estava pronto o poço que iria nos redimir. Mas
não havia mais begônias, nem avencas, nem samambaias para colocarmos sobre a
imensa e circular tampa de cimento.
Parei de falar e olhei para meus companheiros. Estavam
calados, pensativos. Percebi que não esperavam nenhuma continuação da história,
nenhum final surpreendente, nenhum suspense ou mistério finalmente revelado.
Nada disso.
Lá fora, o dia já clareava. Fomos nos levantando um a
um, lentamente, sem palavras. As nossas presenças pareciam incomodar-se
reciprocamente. Queríamos ficar a sós, cada um consigo mesmo, cada um com seu
poço, isolado do mundo.
Despedimo-nos sem vivacidade, cada um tomando seu
caminho. Quando me vi só, respirei fundo, enfim livre. Era como se acabasse de
confessar um crime hediondo.
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